Archive for the ‘Conto’ Category

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Limbo.

novembro 13, 2009

A primeira sensação foi à desorientação causada pelo fulgor de um clarão que impedia mesmo de reconhecer sua origem. Então ele cerrou os olhos e foi muito lentamente retomando a consciência. Inicialmente a cabeça não obedecia a vontade de erguer-se, não conseguia sequer girar o rosto em qualquer direção.

Durante uma fração de tempo incerta ele se esforçou para tomar posse do próprio corpo, o esforço vão serviu unicamente para exauri-lo. Adormeceu sem noção de hora ou dia, seguiu aprisionado pela imobilidade, restrito das suas vontades. Não acusou qualquer necessidade básica, nem sede ou fome; as impressões sensoriais dissipavam-se não havia qualquer registro de cheiro ou cor, apenas aquele clarão vasto que evanescia a visão numa amaurose que fragilizava.

Este estado prevaleceu por um espaço de tempo bastante largo, até que num certo momento ele começa a movimentar-se no seu claustro, recobrou a movimentação natural do pescoço e gradualmente tomou posse dos seus membros; seu corpo deixava de ser uma caixa e começava a funcionar com partes autônomas, embora a visão ainda não conseguisse sustentar estes movimentos.

Assim inseguro e solitário foi se acercando do espaço que o isolava.

A existência era uma circunstancia extemporânea, diluia-se em qualquer tentativa de buscar o passado ou futuro, a única unidade possível era o agora e mesmo na fluência do ato, todo movimento era o prenuncio de uma armadilha. O desconhecido era o seu amparo imediato, a insegurança era o único estado conhecido.

A vastidão que a retomada dos movimentos registrou trouxe junto um resquício de consciência, que buscava alocar as idéias, ordenar as sensações e em vão tentava nomear as coisas…

“Qual era mesmo o seu nome?!”

A reflexão acerca do seu estado constatou que sua cela de percepções somente aumentara de tamanho, enquanto não recuperasse a visão seria prisioneiro da insegurança gerada pela dependência da imagem. Sua memória ainda resistia a ser resgatada, pairava uma ânsia de reconhecer qualquer fragmento do vazio.

Mesmo o nome dos objetos escapava das definições conhecidas, não conseguia associar um objeto a qualquer palavra, pairava num mar de indefinições, não conseguia orientar a atenção para qualquer elemento que estabelecesse uma relação concreta.

“Qual era mesmo o seu nome?!”

Sentia uma necessidade de movimentar-se pelo pequeno espaço que dominava, e estender este domínio para o alcance máximo que a sua insegurança permitisse. Tomado por estas divagações deu-se conta da teia que se construiu ao seu redor, o quanto dependia de recursos que não se apresentavam.

“O que sustentava esta existência?!”

Este senso despertou um horror instintivo, que suscitou todas as questões que recusava-se a responder.

“Estaria morto?”

Acomodou-se mais uma vez, desejava que tudo fosse um torpor, que cessaria em breve trazendo de volta o governo das sensações. Sentiu suas referencias dissiparem e se entregou a escuridão.

 

Dudu Oliveira.

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A ponte.

novembro 13, 2009

 

Ver as fotos de Lucas no álbum de família é um recorte no tempo, um registro de um passado glorioso. Vivíamos em uma casa grande com quintal e árvores, um universo particular entre índios e cowboys, astronautas e alienígenas.

O que chamavam de infância era uma sucessão de eventos; pescar rãs no alagado, tomar banho de chuva, guerra de lama, roubar goiabas no sítio do Coronel, era este o sabor das memórias de menino. Junto com meu irmão mais novo, dominávamos um mundo fantástico construído pela imaginação, em torno de nós.

As aventuras da infância acabaram numa dor de cabeça de Lucas, as sucessivas visitas a médicos cada vez mais longes, em intervalos regulares; as chapas de cabeça, os exames de nome complicado e os remédios que traziam sono e não curavam.

Quando terminaram as férias Lucas não retornou à escola, a professora nada perguntou e aos meus colegas disse que ele estava com dor de cabeça, uma dor muito forte.

Assim se deu a curta vida de estudante do meu irmão, logo sumiu na memória dos coleguinhas da escola e mesmo os garotos que jogavam bola conosco perdiam-no de suas vidas.

A recordação mais nítida daqueles tempos é um sorriso lindo, dos segredos que trocávamos e nossa cumplicidade firmada nesses códigos; quando os comprimidos levaram o brilho deste sorriso, deixando em seu lugar uma expressão longínqua e abstrata que ainda procura o horizonte das nossas tardes ensolaradas.

Minha mãe foi ficando forte e determinada, mas os comprimidos que não curavam roubaram a cor dos seus cabelos, puseram vincos em sua pele e muitas lágrimas nos seus olhos. Os natais foram ficando pálidos; as conversas silenciosas, mesmo os risos foram ficando nervosos e vagos.

Durante muito tempo pedi a Papai Noel nossa alegria de volta, deixaria Lucas jogar com a minha bola de couro, não brigaria mais pelas goiabas do Coronel; então percebi que Papai Noel não existe, os presentes são comprados na loja pelo papai, que nestes dias dorme abraçado com Lucas.

Havia dias em que ele andava pelo quintal, olhava as borboletas e se distraía com os pássaros que vinham nos visitar, aquele quintal estava esgotado em segredos e graça. O pouco contato que nos restara era a sua saída do banho, ele vinha com o pente na mão para que eu lhe penteasse o cabelo.

Era o nosso momento, tocava seus cabelos compridos e os penteava calmamente, até que ele pedia o pente e retornava para guardá-lo no banheiro, me habituei a esperar o banho de Lucas antes de jantar.

Minha mãe era uma mãe amorosa, abandonou seus sonhos e agarrou-se as incertezas; recebi todo tipo de atenção e cuidado, mas ela nunca me olhou como olhava o Lucas, ainda quando ele se descontrolou e quebrou o nosso pente de osso e nunca mais permitiu que outra pessoa, senão minha mãe, lhe penteasse os cabelos.

Lucas demolia a única ponte que conhecia para chegar até ele, neste dia descobri que precisava falar com ele, dizer coisas muito importantes que um irmão mais velho deve dizer ao caçula.

Estudei por nós dois e ainda estudo, minha mãe nunca pintou o cabelo, aprendeu a viver com esta cor opaca e triste; papai se aposentou e brinca com Lucas de um monte de coisas, assistem ao futebol pela tv, e tomam juntos sorvete de creme, o favorito de Lucas e da família inteira.

Lucas agora tem quarenta anos, ainda toma aqueles remédios que não curam, papai dorme abraçado com ele.
Apesar de não acreditar em Papai Noel, todo ano dou uma bola de couro para meu irmão, ele as adora e sei que esta ponte permanece firme e nos pertence.

Dudu Oliveira.

 

 

 

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O Padre Evaristo.

novembro 11, 2009

Era flagrante o carisma e a presença física do padre Evaristo, o porte equilibrado e firme sustentava as medidas de um passado de atleta. Havia a voz pausada e clara com a inflexão que os sacerdotes adquirem nas litanias em latim e somava-se a musicalidade herdada de sua família.

Porém, o que mais chamava a atenção na sua figura era a beleza física, um rosto másculo de linhas finas, uma beleza latina mesclada nas raízes nativas com o homem caucasiano. Um padre que chamava a atenção pela sua figura e conseguia transpor o obstáculo das gerações ao inserir os questionamentos mais freqüentes no cotidiano dos jovens em seus ofícios.

Assim, continuamente, o padre foi ganhando importância diante da renovação dos fiéis da diocese. As pastorais envolvidas nas questões dirigidas aos jovens seguiam cooptando voluntários e dando visibilidade a atuação do padre.

Algumas voluntárias desenvolveram uma afeição fora da natureza das atividades do sacerdote, porém ele as desencorajou, de maneira gentil e veemente, e com certo rigor quando o assédio não se extinguia a primeira intervenção.

Desta forma, além da admiração da geração mais jovem, o padre ganhava o respeito da ala mais tradicional dentre os fiéis de sua paróquia.

Havia uma atenção especial relacionada aos drogados, mães solteiras e aos criminosos em busca de regeneração; a competência necessária para lidar com estas situações foi consolidando uma projeção considerável na comunidade.

O delegado incluiu o padre no conselho das penas de prestação de serviços nos delitos leves; o ginecologista do posto de saúde encaminhava as adolescentes grávidas para a atenção pré-natal desenvolvida pelo grupo de mulheres que o auxiliava nestes cuidados.

Era normal as comunidades carentes buscar no padre auxílio na resolução de conflitos, para aconselhamento matrimonial e, sobretudo, nas festividades, quando ele emprestava os seus dons artísticos; quando tocava violão e cantava musicas de um repertório popular relacionado a sua atuação de sacerdote; costumava ser o clímax da reunião.

Seguindo este cotidiano, o padre recebeu do bispo a transferência para uma paróquia maior e, conseqüentemente, mais importante.

Sua atuação era conhecida na região e o bispo teve a sensibilidade de conceder algum tempo para o padre preparar um substituto. Sob a comoção de uma paróquia inteira padre Evaristo foi atuar em outra cidade.

A recepção foi calorosa, havia a curiosidade relacionada à beleza do padre, e o antecessor anunciou uma pequena apresentação musical como forma de aproximar o padre de sua nova comunidade. Tal iniciativa coroou de êxito todas as expectativas dos fiéis e dos padres.

O padre era, de fato, bonito, cantava e tocava muito bem, além de devotar uma atenção excepcional a cada pessoa a que era apresentado.

Os primeiros meses serviram para a paróquia perceber a devoção daquele homem aos seus ofícios, com menos recursos e pessoas o padre criou uma rede de atenção nos moldes da sua situação anterior, e contando com o relato dos seus antigos parceiros, logo teve a atenção do delegado e das entidades que prestavam serviço aos mais necessitados.

A missa de domingo era a única que o padre mantinha uma breve atividade musical, tal fato determinou uma ocupação sem precedentes nas manhãs de domingo, um crescente interesse nesta missa fez com que outros padres de pequenas paróquias retardassem seus ofícios a fim de terem suas atividades prestigiadas.

Percebendo os efeitos de suas atividades, padre Evaristo sugeriu aos outros três padres da região uma missa itinerante que seria rezada em espaços maiores em cada paróquia visando os efeitos de uma atuação integrada e o conseqüente aumento do número de fiéis.

Foi esta itinerancia que trouxe Dona Rosa a presença do padre, uma mulher de beleza excepcional, porém contida em acessórios que utilizava deliberadamente para obscurecer seus atributos.

Usava pouca maquiagem, mantinha cabelos presos, algumas bijuterias, que de tão ordinárias passariam por vulgar; roupas soltas e de modelagem antiga escondiam as formas de um corpo jovem que sua dona teimava em disfarçar com um andar jocoso e desleixado.

Dona Rosa era casada com Camilo, um pequeno comerciante, religioso, de formação austera; quase se tornara padre. Segundo contava, a doença do pai e a depressão que consumiu sua mãe fizeram com que abandonasse a vocação e fosse cuidar de sua família. Apesar dos fatos, jamais deixou de colaborar com a igreja ou de se envolver nas atividades humanitárias que sua paróquia promovia.

Foi numa celebração do mês de maio que se conheceram, o padre atendeu a todos com igual atenção e ouviu Dona Rosa perguntar, curiosamente, se sua beleza física não atrapalhava o seu trabalho junto à comunidade.

O padre respondeu:

– Atrapalha mais as pessoas que não entendem o meu compromisso, que a mim, especificamente. A minha escolha deste tipo de amor, por todos, é melhor que algum amor por uma única pessoa. Dona Rosa ficou surpresa com a resposta do padre e ao mesmo tempo curiosa com a sinceridade dele apresentando seu ponto de vista.

Padre Evaristo cumprimentou Camilo com entusiasmo e o convidou para assistir a missa em sua paróquia, Camilo disse ser uma pessoa muito ocupada e que já estava comprometido com as atividades paroquiais do bairro.

Dona Rosa, porém, adiantou-se em dizer:

– Se o padre for cantar, nós vamos.

O padre sorriu e disse que aos domingos a celebração incluía sempre algumas musicas para celebrar a felicidade que todo homem de Deus deve almejar.

Despediram-se naquele momento deixando o padre com o semblante levemente modificado. A seguir o padre alegou uma indisposição devido à noite mal dormida e pediu licença para se retirar.

As missas de padre Evaristo mudaram a vida de Dona Rosa e Camilo. A semana se arrastava em direção a um domingo efêmero, nas primeiras missas Camilo ainda tentou ficar até o fim, porém alguma coisa foi distanciando-o da celebração e em setembro limitava-se a deixar Dona Rosa na porta da igreja, era o único compromisso que a mulher se aprontava antes do marido.

Outra coisa que mudou foi à forma de Dona Rosa se vestir, a beleza e o viço que antes eram ocultados das vistas da cobiça masculina, ficaram reservados para as aparições de domingo, onde uma produção esmerada dava aquela mulher simples ares de uma feminilidade delicada que evanescia, não havia nada de vulgar ou excessivo, via-se apenas uma mulher bonita transcendendo toda paixão que um corpo pode sugerir.

Havia na pastoral da família uma vaga de voluntária, conforme o anúncio no quadro de avisos da igreja, e foi assim que Dona Rosa passou a freqüentar o salão paroquial, nas tardes de quarta-feira, entre jovens casais e crises de toda ordem, foi tornando-se próxima do padre.

Uma semana antes do natal, durante a reunião do grupo de voluntários, padre Evaristo percebeu traços de melancolia, uma leve tristeza que estava tomando aquela figura. Apesar da afeição flagrante que tinha pelo padre Dona Rosa mantinha-se discreta e envolvida nas atividades paroquiais.

Quando o grupo se dispersava em despedidas, padre Evaristo cercou-a e indagou sobre a sua evidente mudança de espírito, do silencio e da tristeza que ele pressentia em sua voz.

Padre Evaristo pegou ternamente na mão de Dona Rosa e perguntou se havia algo que ele pudesse fazer para aliviá-la da sua tristeza.

Após resistir, por pudor e vergonha, Dona Rosa começou a falar dos seus problemas, de maneira sucinta descreveu o seu namoro, noivado e casamento com Camilo, um bom homem, respeitador e, sobretudo, um ser humano de grande coração.

Contou como se conheceram na pastoral, jovens e apaixonados casaram-se e viviam uma vida de trabalho e dignidade onde a estabilidade e a ordem traziam equilíbrio para a felicidade que estavam construindo.

O padre com muito jeito indagou:

– Onde está o problema?

Quisera não fizesse a pergunta.

– Padre, Camilo está mudado, se não fosse um homem tão correto diria que está me traindo; já faz algum tempo que não temos mais intimidades de marido e mulher, achava que o problema era comigo, comprei roupas novas, modifiquei o cabelo, dei de fazer manicure toda semana e ele não me nota. Ainda ontem, depois de se remexer na cama a noite inteira, foi dormir no sofá.

O padre fez uma pausa silenciosa que pareceu eterna, tomou a mão de Dona Rosa entre as suas e olhando dentro dos seus olhos lhe disse:

– Dona Rosa, seu marido é um bom homem, auxilia os necessitados e cumpre com os deveres perante Deus, é possível que haja problemas de negócio, de família, porém sempre buscamos as razões mais egoístas para justificar a nossa infelicidade. Neste momento, com todo respeito, a senhora busca uma afeição mais calorosa, que talvez não seja amor, esta afeição ocorre o tempo todo e sabemos as conseqüências dela. Dona Rosa preste a atenção em seu marido e veja o que, de fato, o perturba, talvez assim a senhora possa restituir a direção que deixava os dois realizados no casamento.

Dito isto, o padre deu um olhar cúmplice a Dona Rosa e a acompanhou até a saída onde Camilo a aguardava, depois dos cumprimentos seguiram para casa.

As reuniões da pastoral estabeleceram um círculo de confidencias, com descrição o padre buscou conduzir Dona Rosa para uma atitude de compreensão e interesse em solucionar a ausência de Camilo no casamento.

Tanta atenção para uma pessoa despertou o interesse de alguns fiéis, diziam que Dona Rosa se apaixonara pelo padre, associavam o afloramento de sua beleza a uma tentativa de sedução. Os comentários chegaram aos ouvidos do padre antes de saírem dos círculos da igreja.

Numa atitude inesperada padre Evaristo reuniu duas das mais antigas congregadas para pedir auxílio e preservar a reputação de Dona Rosa com relação aos comentários infundados, disse ainda que após a missa de domingo conversaria com o marido para tentar trazer alguma paz para o casamento de duas pessoas de sua estima.

Domingo após um sermão vigoroso contra difamadores e aduladores; padre Evaristo alegou problemas na garganta e cantou apenas uma música. O serviço religioso foi mais curto e os fiéis entre preocupados e frustrados retornaram para suas vidas.

O padre aguardava Camilo que sempre buscava Dona Rosa ao fim da missa. A chegada de Camilo foi lacônica, ele tinha uma expressão vazia e mãos tensas e atormentadas, que percorriam o peito e afundavam-se nos bolsos da calça, tal inquietude não escapou a atenção de ninguém.

O padre convidou-o para um café na sua sala, um tanto embaraçado e meio sem jeito, aceitou. Passaram-se duas horas ou um pouco mais, o padre retornou com o semblante tenso, as mãos agitadas e disse para Dona Rosa:

– O seu marido é um bom homem, está com alguns problemas relacionados a um amigo do passado e tão logo ele possa ajudar este amigo, tudo voltará ao normal. Peço que a senhora vá para casa, que em seguida eu o acompanho, é apenas o tempo de um bom homem se recompor, fique tranqüila tudo ficará bem.

Dona Rosa voltou para casa e nunca mais viu o marido. O padre enviou uma carta solicitando o seu perdão e pedindo que compreendesse a sua fraqueza diante do destino que vinte anos depois, o colocara diante do único amor que o faria renunciar a tudo, como a mais estranha provação.

Dudu Oliveira.

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Tocaia.

novembro 11, 2009

É a segunda cerveja, bebida numa birosca imunda nas entranhas de um ermo esquecido por Deus. Perdera a noção do tempo que durou a campana, o estudo dos hábitos, o comportamento da vizinhança, as considerações profissionais sobre o contrato.

O seu disfarce era um jogo de sinuca, em que alternava derrotas e vitórias para justificar o tempo empenhado, aprendera a misturar-se aos dialetos e hábitos de sua outra esfera; bebia a cerveja ordinária sem pesar e comia as especialidades bizarras do estabelecimento.

O baiano dono do pequeno comércio alimenta um jukebox com as saudades da terra, os sotaques misturam as histórias com um tempo bom que nunca houve, a única arte conhecida era a sobrevivência. Sua encomenda estava do outro lado da rua, o cotidiano miserável de esperanças refundadas nas misérias de ano novo.

Era uma mulher comum de uma beleza desgastada e um sorriso vago, sem alegria. Uma descrição correta para os sonhos confinados nos bairros dormitórios da capital. Não tiveram filhos, viviam a companhia mútua das frustrações, das coisas por realizar e do abandono das esperanças.

O contratante cobrava a reparação da honra, havia tempos que suspeitava da infidelidade da esposa, e registrara mudança de comportamento toda vez que o vizinho ligava sua aparelhagem de som e Caetano cantava: “você só me ensinou a te querer…”. Aquela música passou a infernizá-lo ao ponto de a reparação tornar-se indispensável.

Não havia pressa quanto ao contrato desde a resolução a música operou um efeito inverso, havia um segredo entre ele e Caetano, apenas eles sabiam que eles jamais esqueceriam…

Os dias sucediam havia a campana e as pequenas burocracias sobre o ato:

Que arma?

O que fazer com o corpo?

O contratante exigia uma morte lenta com o reclamado reconhecimento pela parte ofendida, aquela galega estava com os dias contados, caminhava neste mundo por puro capricho.  Olhava para a casa ao lado e pensava incluir o vizinho na encomenda; isto era outro assunto, talvez mais tarde…

Então a luz de um cômodo acendeu com a voz do Caetano: “agora que faço eu da vida sem você”; e ele despertou das divagações monótonas sobre o caso, atravessou a rua e soltou o trinco do portão envelhecido. Apressadamente atravessou o pequeno quintal, a porta negligenciava as chaves como de costume, prevalecia o cheiro cotidiano das preparações na cozinha, na bancada da pia uma faca fatiava um peito de frango.

“Você só me ensinou a te esquecer” cantava Caetano, então ela o encarou e disse:

“Vá tomar banho se quiser jantar agora, ainda bem que não ficou a noite toda na sinuca…”

Ele silenciosamente caminhou em direção ao banheiro.

Dudu Oliveira.

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O Visitante.

junho 20, 2009

Havia tempos que não experimentava o vazio desta saudade consumada, desta memória imortal. Um tempo sem velhice.  O confinamento numa eternidade absoluta. Uma memória que se foi enevoando sem abater sua figura, indevassável e imutável, neste tempo cristalino que jamais passará.
Para sempre serei seu menino, agarrado nesta mão, sustentando este fiapo de vida que foi nos separando, este frio que foi se instalando enquanto chorávamos…
Nosso jogo de bola, rir de coisa alguma, feliz de uma felicidade sem motivo, rir do seu riso…
Olho em volta todos estão tristes, as mãos trancando uma prece travada… Não estou triste não, é este vazio que foi devastando nossas alegrias.
Sinto falta do seu abraço, da sua loção de barba, a vibração da sua voz, quanta coisa foi se reduzindo à sua presença, e agora tudo o que me falta retorna na tua ausência.
Sinto um vazio só de lembrar do hospital, naquelas vidas mantidas por esperanças, fraquejando diante da fragilidade da fé. Corredores impregnados dos odores da morte, que foi entranhando até tornar-se parte da nossa pessoa. O convívio com a dor, um exercício inominável de tristeza e temor.
Havia uma sensação da vida desgarrando das pessoas, transitando nos corredores que chegava aos ossos.
Queria que você soubesse que tenho saudades, que pouco falei que te amava e quanto me orgulhava ser seu filho. Este tempo passou tão rápido, ficou tanta coisa por dizer… Eu queria dizer que te amo, mais uma vez, e que você entendesse o tamanho da gratidão e da felicidade que vai dentro deste amor.
A morte é um mistério, entristece e ensina. Esgota as certezas e obriga tudo a se renovar, mas esta saudade, este amor vai se expandindo até que esta ausência conduza a uma sabedoria. Espero que a morte não lhe seja triste, pai. Não a sinto assim. Está tarde tenho que ir.
Cuida do mundo, que eu fico com Deus…

                         * com o auxílio luxuoso do Amargo.

 

Dudu Oliveira.

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A menina silenciosa.

junho 19, 2009

 

… e a menina vivia enfurnada num castelo de silêncios e as presenças contínuas se confundiam nas pausas onde os ruídos perturbavam um inaudível solilóquio.

As atenções se voltavam para os eventos como se a dinâmica fosse à alma das substancias e tudo só existisse em movimento. Aquela menina habitava um universo de silêncios, seus olhos investigavam os brinquedos com efêmera curiosidade e circundavam o ambiente num exercício de reconhecimento.

Buscava um ponto discreto e se voltava a observar formigas ou coisa que o valha. Seus olhos não evitavam os olhares apenas transpassavam-nos como se as pessoas fossem translúcidas e seu interesse se localizasse adiante.

Algumas pessoas se recordam de ter flagrado algum sorriso quase sempre associado a jogos com pedras e bonecas inertes, que sequer possuíam nomes, como das meninas na sua idade.

Ela vivia uma existência secreta que escapava das atenções e remetia a interesses inatingíveis e indevassáveis.

Assim sem muito alvoroço a menina desapareceu e levou com ela toda reverencia por um silencio que trazia em si. Ficou evidente toda a solidão que aquele alarido sem medida trazia para aquela casa. Os olhos procuravam-na nos seus cantos preferidos, enfim perceberam a ausência das bonecas e a rota das formigas que agora habitavam a casa sem governo.

As pessoas conversavam mais alto como se o volume de suas vozes pudesse sufocar a força aterradora daquele silencio. A televisão rugia num transe lisérgico e inundava a sala com sua solidão pasteurizada, imitava um pretenso dialogo que no fim da noite apenas deprimia e não estancava a agonia.

Todos seguiam condenados pela força daquela ausência e viviam esta falta com a retidão de justa sentença, era necessário que houvesse justiça e a paz era o retrato da menina sobre o criado mudo aos quatro anos – duas semanas antes de partir. 

 Dudu Oliveira.

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O céu de cinza chumbo.

junho 18, 2009

 

O céu estranhamente foi se tornando cinza e pela primeira vez É atentou para isto, como seu estado se assemelhava a aquela mudança; como as nuvens remexidas e reviradas se pareciam com a sua tempestade interior.

É caminhava pela calçada errante, mas ao mesmo tempo intimamente resolvida. Exaurida de crise em crise, já não comportava mais tamanha desolação.

Mecanicamente enfiou a mão na bolsa e apanhou um cigarro, tateou uma vez mais em busca do isqueiro, tragou ansiosa, súbito estancou vazia ao deparar com a urgência mecânica do gesto, olhou para o cigarro, atirou-o ao chão, pisou como pisasse cada gesto condicionado por uma vontade que não fora sua.

É olhou a volta como buscasse uma testemunha fortuita para sua raiva, sorriu cinicamente ao se perceber discreta, mas no fundo estava magoada por não estar sendo observada; então sentiu a angústia de seguir sozinha.

À sua esquerda se enfileiravam lojas que seguiam feito uma paisagem móvel em desenho de animação. Novamente por um insistente hábito ela estancou diante da livraria que cabia exatamente no seu desejo de gastar o tempo e adiar o confronto consigo mesma.

O reflexo do vidro mostrava um rosto cansado e uma beleza contida, destas que se adivinha de forma especial e se apresenta sem espetáculo. Ela olhou dentro dos grandes olhos amendoados e foi descobrindo a tristeza que estava contida naquela expressão suave.

Prestou atenção nas roupas de tons claros que realçavam suas formas equilibradas, porém discretas, reparou no detalhe do soutien de renda branca que na transparência da blusa lhe conferia um ar delicado de uma sensualidade flagrante, sabia-se bela. Distraidamente passou a mão pelo rosto e este contato fez com que todo torpor esvaísse e seu rosto se contraiu numa expressão de angústia.

A distancia até a sua casa se contava em quadras, umas poucas quadras, que se guardaria em sua memória como fotos de celebração, um ícone para cada memória; a padaria, o bar, a banca de jornal, a pequena mercearia, a pracinha com suas crianças e seus cachorros.

Seguia desfiando suas memórias num ritual de reconhecimento e despedida, ainda poderia fugir para um lugar onde não soubessem quem era, nem sobre a sua natureza trágica. Poderia ir para a Austrália, Nova Zelândia e talvez se chocar com seus costumes e se desprender desta essência caustica que suas vivencias foram acumulando, ao ponto de agora sentir-se diante de um juízo maior que tudo.

Não havia na Terra lugar distante o suficiente onde pudesse se isolar, se libertar da nódoa, da náusea em que se transformara a sua existência.

Todas estas reflexões remexem no seu íntimo, ela balança e chacoalha sob o governo destes espasmos, vindos deus sabe de onde.

Sua mão tremula procura os óculos. É preciso esconder o rosto antes que esta aridez esteja desmascarada; uma onda fria percorre todo o corpo e um arrepio atravessa todas as vísceras; trazendo ânsias que estrangulam sua garganta.

Ah, seria tão bom se sufocasse, se sucumbisse de causa natural e cessasse todo este martírio de estar sóbria e se enxergar despida de tolos disfarces.

É chega a casa, onde sempre se sentiu protegida, guardada; agora esta casa é só o templo de um grande vazio, onde todas as celebrações se embaralham e as confissões se expõem nas pausas e silêncios. Hoje ela não escutará música, não usará nenhum subterfúgio para disfarçar a solidão, seguirá até o fim e pagará qualquer preço para retomar a paz.

A visão da geladeira desperta uma sede ordinária, ela se serve de um copo d’água e logo desmascara o ritual. Solta os cabelos ao mesmo tempo em que deixa escapar um suspiro profundo, as lágrimas teimam em turvar sua visão, aos poucos ela caminha para o banheiro, vai lentamente se despindo, deixando no caminho as roupas e as memórias retalhadas pela sua angústia.

O banheiro com seu cheiro de eucalipto agride com sua assepsia; um grande espelho revela um corpo jovem, cheio de energia. Seios firmes, pernas esguias e um tom alvo contrastam com o castanho escuro dos seus pêlos, com a coloração rósea dos seus mamilos; uma lágrima enorme que se desprende dos seus olhos.

É prepara a banheira com uma água tépida, os vapores embaçam o espelho, só assim ela apaga aquela imagem. Coloca uma toalha grossa numa extremidade para apoiar a sua cabeça e assim ela relaxa.

Pega a caixa de primeiros socorros e sente o espasmo violento de mais uma náusea. Lentamente vai abandonando o corpo no fundo da banheira fecha os olhos e vai se tocando, se reconhecendo, numa reverencia sem par.

Ainda de olhos fechados tateia dentro da caixa de primeiros socorros, seus dedos tocam o aço frio e logo lhe transfere calor, sua carne oferece acolhida, primeiro um braço e em seguida o outro, não há dor é só um formigamento e uma ardência localizada; há um silencio rosa quase rubro, que vai dominando e preenchendo toda aquela  vastidão.

As memórias se embaralham vertiginosas, um homem com mãos vigorosas toca seu corpo, um cheiro tremendamente familiar circunda esta figura, ela o conhece; qual é mesmo o seu nome? Sua boca, sua língua, e este cheiro e este desejo doce de se entregar e de resistir…

As imagens se misturam e aquela mulher de cabelos longos, se parece muito com sua mãe, te abraça com muita doçura e tem os teus olhos tristes, sim seus olhos são tristes como os de sua mãe.

Agora são rostos de homens, famintos e apaixonados que se oferecem e se saciam, mas você que os acolhe em seguida os repele como não fizessem parte de um mundo que só você tem.

Todas as cores estão pálidas a mulher triste te acena um adeus e chora. Uma luz fulgurante te traz uma paz que ainda não experimentara.

Quando uma mão conhecida toca o teu ombro, o mundo já está velho, mas aquele cheiro único, inesquecível reacende seu corpo para o único desejo que ele conhece; o homem sem rosto te toma e te ama com horror e paixão; e o seu orgasmo é mais intenso que a escuridão que chega para te abraçar.

 Dudu Oliveira.

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Os olhos de É.

junho 17, 2009

 

Ainda não são seis horas, É. anda pelas ruas com a leveza de uma felina e o sorriso de uma sensualidade natural quase selvagem. Os olhos são brilhantes como se todos os enigmas estivessem contidos em tudo o que eles puderam calar. Seu sorriso registra um mundo oculto cuja alegria era dividida em olhares de convites e silêncios.

É. caminha pelas ruas, por trás dos óculos escuros resiste um brilho, que beira lágrimas.  Seu corpo ainda estremece das memórias sinestésicas, das fantasias de cada fragmento destas memórias registradas no seu corpo, então ela baixa a cabeça, deixa o ar escapar entre – dentes e segue pela calçada rememorando à tarde num motel barato.

Os músculos da pélvis registram a fadiga de uma tarde pródiga, da fúria das estocadas fundas, da cavalgada instintiva, quase demente; da volúpia do sexo oral que ela adora fazer em seu amante, das mordidas, de quando ele a chama de puta, ela fechava os olhos enquanto estava com ele na boca e ao abri-los sabia que ele estaria lhe encarando num pacto de cumplicidade que tornava a carícia plena, completa.

É. se guardava para aquelas tardes em que se dava inteira e se esgotava num tributo a própria sensualidade. Ela buscava sedenta a renovação da sua urgência de fêmea e se encontrava com sua essência.

É. gostava de provocar uma falsa violência, que sempre era percebida pela cumplicidade do seu amante, então ele batia nela e de acordo com as reações e intensidade avançavam neste jogo de provocação e domínio. A ação era sempre silenciosa e predominava o ofegar das respirações, quando a adrenalina e o esforço traziam uma renovada excitação

É. rolava pela cama simulando fuga, então seu amante a perseguia até encurralá-la em algum canto, cômodo e uma vez, até dentro do armário… Então ele atirava É. ao chão e a imobilizava com o peso do seu corpo; a ela cabia o papel sincero de resistir, que ela fazia bem; os corpos começavam a suar eles se encaravam sem qualquer palavra, então ele a colocava de bruços e por um instante ela parava de se debater.

É. aguardava esta posse como um vínculo e cultivava este ritual como uma reserva de si mesma. Ela fechava os olhos e segurava a respiração até recebê-lo todo, então empinava o quadril e mexia e começava a chorar baixinho, bem baixinho. O início deste choro era um sinal, um pedido que seu amante aguardava e se remetia com mais força para dentro dela, quanto mais forte, mais ela mexia e mais intenso lhe escapava o choro.

A força desta tensão crescia de tal forma que chegava a lhe faltar o ar, então nestes momentos ele lhe dava uma palmada vigorosa, que chegava a formigar e as lágrimas saltavam os olhos com uma intensidade menor apenas que o prazer que sentia. Ele entrava e saia sem resistência, senhor e escravo daquele corpo, apertava seus mamilos de uma forma enérgica quase brutal, avisando que estava pronto, então ela o afastava um pouco do seu corpo e recebia o seu gozo nas nádegas e mantinha-se empinada para que após o gozo ele a penetra-se novamente e fica-se ali até a ereção ceder. Quando seu membro enfim estava inerte ela se virava, o chamava de bruto e ia até o banheiro conferir os hematomas.

Agora estava a poucos metros de sua casa, se retirasse os óculos às lágrimas daquela tarde ainda seriam visíveis. Os músculos se ressentiam da volúpia e da febre com que se entregara. Tudo o que ficara daquela presença era uma noção de pertencer que só cabia na sua feminilidade e uma exaustão física que prostrava. Seu corpo ardia e doía carregado das memórias e do vigor do seu amante.

Chegou frente ao pequeno apartamento e revirou a bolsa procurando a chave, abriu a porta retirou os óculos e foi se olhar no espelho se sentiu linda, acariciou os seios sobre a roupa e viu a fêmea mais desejada do mundo.

Quando o marido chegou ela estava terminando de preparar o jantar, ele olhou para ela e disse que ela estava linda, ela sorriu seu sorriso indecifrável, se aproximou e  lhe deu um beijo apaixonado com os olhos límpidos que sempre prometiam uma noite eterna.  

  

Dudu Oliveira.